Um Relato por: Marun Reis
Nos últimos anos de envolvimento direto com a comunidade trans, mais especificamente com a transmasculina, percebi o quanto as narrativas pessoais se conectam em pontos determinados, por mais distintas que sejam as histórias de vida de cada ume. Essas conexões não se restringem a pontos de violência (nunca conheci comunidade mais acolhedora que a transmasculina), mas, infelizmente, perpassam a violência na maioria das vezes. Para falar sobre alguns desses pontos, trago minha vivência pessoal, que de forma alguma pretende abarcar as demais vivências trans. Ela é colocada aqui apenas a título de exemplo e com o intuito de compreender um sentimento que parece ser comum a muitos transmasculinos e a muitos não binários: um “não lugar” de existência.
Eu me lembro com detalhes da primeira vez que tive contato com o termo “não binário”. Em 2016 o tema era pouquíssimo difundido, então eu não tinha ideia do que se tratava e, como bom curioso, comecei a pesquisar a respeito. A identificação foi tão grande e tão imediata que costumo dizer que minha transição começou ali. Fato é que, após quase 30 anos de esforço exaustivo para me encaixar na categoria mulher, recusando de forma veemente a identificação como homem, descobrir que eu podia não ser nem homem nem mulher me trouxe uma tranquilidade inédita. Eu me encontrei nesse “não lugar”.
Aqui vale um parêntese sobre a recusa em me identificar como homem. Acredito que os conceitos de homem e mulher estão diretamente ligados a noções culturais e históricas. Uma prova disso é o quanto a definição de homem, por exemplo, varia de acordo com o local do mundo ou o momento histórico ao qual estejamos nos referindo. O que definia um homem no Japão do século XV é completamente diferente do que definia um homem na Inglaterra do século XIX, e assim por diante. A definição de homem no Brasil, no estado de São Paulo, mais especificamente no noroeste paulista, nos anos 1980, quando nasci, não podia, de forma alguma, ser descolada da noção machista de superioridade masculina e submissão feminina. No meu entender, o machismo era, e ainda é, intrínseco à ideia de homem. Quero com isso dizer que está errado quem se identifica dessa forma? De maneira alguma. Sendo o gênero uma construção social, acredito ser possível, sim, construir uma noção de homem que fuja da visão clássica, mas preferi fazer isso me afastando totalmente do que já está estabelecido pela cisnorma, mandando às favas a binariedade e me tornando um corpo transmasculino em harmonia com as feminilidades e masculinidades que me interessam.
Após um primeiro momento de identificação nesse “não lugar”, dei início à transição de forma mais ativa: primeiro socialmente, depois fisicamente e, por fim, legalmente. Cada passo foi dado no tempo que fez sentido para mim, e optei por passar apenas pelas mudanças que julguei necessárias. Mas isso não foi fácil. Acredito que a primeira grande dificuldade encontrada, após os embates mais comuns do início de uma transição de gênero, foi a tentativa da cisgeneridade de ditar como eu deveria alterar meu corpo e me portar para ser, então, um “homem de verdade”, por mais que isso não fizesse sentido algum. Parte da comunidade também compra essa ideia cis-heteronormativa e impõe passos “imprescindíveis” para que a gente seja “trans de verdade”, o que faz menos sentido ainda. Isso costuma vir de pessoas que rejeitam a ideia da não binariedade e desconsideram vivências diferentes das próprias. São muitos os casos de menines trans que se desdobram em mil para tentar arrecadar dinheiro para cirurgias sem nem antes se perguntarem se de fato querem passar por aquilo ou se estão apenas cedendo a uma pressão externa para se encaixarem em uma ideia inalcançável de cisgeneridade.
É claro que existem disforias, e sou a favor das cirurgias, do acesso facilitado ao sistema de saúde e aos hormônios para quem precisa e assim deseja. Mas isso nem sempre se aplica a todes e não deveria ser um parâmetro para medir quem é mais ou menos trans.
Em 2024, um rapaz do censo foi à minha casa e perguntou meu gênero. A não binariedade não era uma opção. Perguntei a ele o que fazer nesse caso, visto que eu era uma pessoa não binária, e a resposta, meio sem jeito e quase sem som, foi: “Acho que você tem que escolher um”. Não responder à pergunta também não era uma opção. Para existir no censo, para existir no meu país, eu precisava dizer que era alguém diferente de quem eu sou. No censo, não havia qualquer pergunta relacionada à transição de gênero. Achei significativo.
Há anos venho acompanhando pessoas não binárias que entram na Justiça para inserir nos documentos o gênero “não binário” ou “x”. Em alguns estados do país, isso já pode ser feito em cartório, mas São Paulo não é um desses estados. Deixei de alterar meus documentos por anos na intenção de juntar recursos para entrar na Justiça e fazer a alteração porque, para mim, essa era uma questão acima de tudo política: como exigir políticas públicas para pessoas não binárias, sejam elas transmasculinas ou não, se as pessoas não binárias “não existem” no âmbito público? O avanço do fascismo, no entanto, me fez mudar de ideia e alterar logo os documentos para “masculino”, com medo de me tornar um alvo ainda mais fácil do que já sou.
Agora, correndo atrás de refazer meus documentos e ficar às ordens com a junta militar, me sinto uma fraude. Preenchendo os dados para a alteração do RG, aguardando a alteração do CPF, me vi sem saber o que escrever no quesito “nome”. Não por não saber meu nome, obviamente, mas por não saber o que esperavam que eu escrevesse ali naquele momento.
Hoje, sou uma pessoa transmasculina não binária e bissexual com alguns documentos que dizem que sou um homem, outros que dizem que sou uma mulher, um censo que diz que não existo, uma cisgeneridade que me zomba, uma comunidade transmasculina que me abraça, uma comunidade queer que, muitas vezes, me desqualifica e uma sensação clara de que nunca serei suficiente dentro do meu desencaixe. Um alvo.
É enlouquecedor.
O “não lugar”, cuja ideia me pareceu tão acolhedora num primeiro momento, hoje me lembra mais um jogo de pinball, no qual eu sou a bola e estou sendo jogada de um lado para o outro até parar em um buraco.
E eu sei que não sou o único a me sentir assim.
É provável que a violência do presente e essa perspectiva sombria de futuro estejam contribuindo para que tantos de nós sejam suicidados. Batalhar para construir um lugar confortável para mim e para outres, antes que esse jogo acabe, tem sido meu objetivo maior.