Por: Nathê Miranda
É sabido que a transmasculinidade existe há muitos anos. No entanto, para uma sociedade que mata pessoas trans, ela ainda é lida como abjeta e marginalizada. A história tenta nos apagar, nos abandonar e nos empurrar cada vez mais para as margens da sociedade. Mas carregamos, em nossos corpos, em nossas vozes e em nossas lutas, a herança daqueles que abriram caminho até aqui, para que hoje possamos mirar novos horizontes e construir nossas vivências. Nossa existência não começa agora, mas segue como um cordão que atravessa tempos e corpos, resgatando as narrativas da transmasculinidade em cada ume de nós, individualmente e coletivamente. Somos contra a tentativa de invisibilizar nossas vivências e trajetórias, reivindicamos nossa memória e reescrevemos nossa história no passado, no presente e no futuro. Nossa transcestralidade é viva! Nós resistimos! E sempre existiremos!
Queremos nos autorizar a partir de nossas experiências, sem precisar da expectativa de ninguém para nos dizer quem somos. Exigimos o direito de construir nossos caminhos a partir da nossa ancestralidade, das nossas vivências e experiências de vida. Queremos oportunidades para construir um ambiente com visibilidade e representatividade.
A luta transmasc é coletiva e, portanto, é de responsabilidade de todes diante da sociedade. Quando uma transição acontece, todes ao redor também transicionam, pois toda transição é coletiva. É essencial que a sociedade acompanhe essas transformações, pois, por muito tempo, nossas trajetórias foram fragmentadas, isoladas e dispersas em narrativas únicas – muitas vezes contadas pela própria cisgeneridade, a partir de um pensamento colonial, punitivo, controlador e fetichista, na intenção de nos nomear sem sequer viver e experienciar nossas narrativas. Nos encontramos, nos reconhecemos e, juntes, ampliamos nossas vozes, abraçando a multiplicidade das identidades (incluindo outras identificações que habitam o espectro da transmasculinidade dentro da comunidade trans), rompendo as fronteiras rígidas impostas pela norma, pela binaridade do sistema de gênero, pelo patriarcado, pelo machismo estrutural e, principalmente, pelo sistema colonial enraizado na nossa história.
Transicionar é habitar um corpo de um futuro utópico, onde as temporalidades se misturam, se diluem e se materializam em outra concepção de presente. Recusamos os estereótipos que tentam nos limitar. Nos violentam quando inserem em nossas vivências o que não nos pertence. A hombridade cis se constituiu ao longo de séculos, com toda uma sociedade organizada para sua estrutura. O fato de sermos invisibilizades nos tira o direito de construir novas narrativas e nos priva de contar as nuances das nossas vivências transmasculinas e não-binárias. Não existe uma única forma de ser/estar no mundo, de ser trans, de ser não-binárie, de ser transmasculino. Nossa transmasculinidade não precisa seguir modelos cisnormativos, porque é nossa, e a reinventamos todos os dias, construindo-a individualmente, coletivamente e socialmente.
O que nos faz transmasculines não é a reprodução de padrões, mas a afirmação da nossa identidade, da forma como nos enxergamos e contribuímos para uma sociedade plural, diversa e transparente. Nossas existências são legítimas, e queremos construir um futuro onde caibam todas as possibilidades de existir dentro da transmasculinidade. Nossos corpos não cabem nas expectativas impostas. Somos transmasculines e, ainda assim, enfrentamos misoginia e violências de gênero, frutos de uma sociedade colonial. A sociedade nos vê como uma ameaça, nos desumaniza, nos reduz a fetiches, nos violenta e muitas vezes nos cobra essa “passabilidade”, negando-nos nossa autonomia e nossa alteridade. Recusamos essa imposição. Nossos corpos são nossos e os moldamos de acordo com nossas vivências e desejos – não com as expectativas alheias.
A não-binariedade tem sua importância por diversos fatores. Ela colabora para a ruptura de noções enraizadas, verdades que precisam ruir. Muitos transmasculines não se identificam completamente como homens, mas também não se encaixam no que a sociedade entende como “mulheres”. Dar visibilidade a essas experiências fortalece a diversidade dentro da própria comunidade transmasculina. A não-binariedade desempenha um papel essencial na luta transmasculina, pois amplia a compreensão da masculinidade e da experiência trans para além das normas binárias de gênero. Muitas vezes, a narrativa predominante sobre transmasculinidade é centrada na transição de mulher para homem (MTH), o que pode inviabilizar identidades não-binárias que também experienciam a masculinidade de diferentes formas. A existência de transmasculines não-bináries desafia a ideia de que a única trajetória possível é a de uma transição estritamente cisheteronormativa. A interseção entre não-binariedade e transmasculinidade é uma força fundamental para uma luta mais ampla pela autodeterminação de gênero e pela quebra de padrões limitantes.
Nosso direito à vida é inegociável! A saúde mental da população transmasculina segue sendo uma urgência, com altas taxas de suicídio. A resposta não pode ser apenas luto; são necessárias políticas públicas de cuidado, acolhimento e assistência, além de suporte estrutural que reconheça nossas especificidades. Nosso viver é resistência, é potência. Ailton Krenak já nos alertou que é preciso construir uma outra humanidade, pois esta está em decadência. Assim como o conceito de gênero construído pela colonialidade também está em ruína. Paul Preciado traz a contrassexualidade como superação das dicotomias das tecnologias de manutenção e controle do sistema hegemônico sexo/gênero. Estamos falando do presente e do futuro, do direito de ultrapassar as expectativas de vida que nossa comunidade atravessa.
O tempo também nos pertence! O envelhecimento transmasculine segue sendo um tema negligenciado, como se não fôssemos projetades para existir além da juventude. Onde estão os transmasculines com mais de 35, 50, 60 anos? Mas nós envelhecemos e queremos envelhecer com dignidade, com oportunidades, com suporte, com redes de apoio e sem o apagamento que insiste em nos atravessar. Somos muitos vivendo à margem, abandonades, sem perspectivas de vida, sem oportunidades de trabalho, sem acesso à saúde.
Nós também criamos, sonhamos, produzimos, somos agentes transformadores na sociedade. Embora invisibilizades, estamos em toda parte: na arte, na cultura, nos órgãos públicos. A arte transmasculina é um campo fértil de expressões e narrativas potentes, mas esbarramos na falta de oportunidades e em um mercado de trabalho escasso, que nos fecha portas. Estamos em poucos/raros lugares de importância social. Exigimos visibilidade, acesso e reconhecimento da nossa produção artística, que resiste apesar das barreiras. Estamos na música, no cinema, nos palcos, nas produções de pensamentos críticos e saberes; estamos no design, na fotografia, na direção, na produção, na moda, na política, enfim, em diversos espaços. Nós entregamos excelência! Excelência trans! Queremos transmasculines ocupando cada vez mais espaços, principalmente aqueles que nos foram negados.
As transmasculinidades negras e indígenas enfrentam opressões múltiplas. O racismo, a transfobia e a colonialidade moldam as violências direcionadas a esses corpos. Por isso, a luta transmasculina por direitos e acessibilidade não pode ser dissociada da luta antirracista e anticolonial. Reivindicamos a valorização das nossas raízes e a reparação das violências históricas que atravessam todas as vivências racializadas, periféricas e PCDs.
Nosso manifesto é um grito de existência! É um grito de resistência! Não seremos mais apagados! Resistimos! Vivemos! Criamos! Reivindicamos nossos direitos! E seguimos, coletivamente, produzindo saberes, reorganizando o caminho para aqueles que virão (crianças transmasc existem em nossa sociedade), articulando a retomada de nossa autonomia, os direitos que a nós pertencem! Enfim, estamos atentes e em luta! A luta é coletiva!