CATS

Por: Viviane de Paoli (Lazzarus)

Nos últimos anos, a forma como nos referimos à comunidade de pessoas transmasculinas tem se expandido. Criamos nossas próprias alcunhas e descobrimos novas maneiras de nos nomearmos, permitindo que nosso ideal de mundo habite em nós, sem a necessidade de “aparas” ou “moldes” para caber na sociedade. Aos poucos, a transgeneridade deixa de ser uma cartilha rígida a ser seguida, abrindo espaço para as muitas vivências que permeiam esse grupo especial de pessoas. Inspiramo-nos uns nos outros, nos caminhos percorridos para a autodescoberta, aceitação e posicionamento no mundo.

Historicamente, pessoas transmasculinas foram agrupadas sob o termo AFAB (Assigned Female At Birth ou “pessoas designadas como mulheres ao nascer”). No entanto, essa categorização tem se tornado menos relevante para muitas pessoas trans, à medida que o conceito de “homem trans” também se flexibiliza. Esse processo é impulsionado pelo avanço das teorias feministas, anticapitalistas, dos estudos decoloniais e pela contestação do binarismo de gênero. A revolução está em curso. As novas gerações já compreendem que a ideia de gênero é uma das maiores ficções impostas à humanidade.

Apesar dos avanços, as pessoas transmasculinas enfrentam violências específicas, sendo algumas das mais graves o apagamento de suas identidades e a invisibilização de suas contribuições para pautas essenciais, como o acesso à saúde para gestantes trans e o reconhecimento de suas transcestralidades. Nossos corpos sempre existiram. Se hoje ocupamos um espaço nomeado, no passado, muitas pessoas transmasculinas estavam inseridas nos movimentos feministas sáficos e lésbicos, atuando ativamente e nomeando-se de diferentes formas. A falta de organização política dessa comunidade não foi por escolha, mas pela negação de espaços e direitos. Muitas vezes, fomos vistos apenas como uma “cota” dentro do ativismo transgênero, devido ao nosso número menor e à dificuldade de nos fazermos presentes em momentos cruciais de luta.

A violência letal também atinge homens trans e pessoas transmasculinas. Em 2022, segundo dados da Agência Brasil de Comunicação, os dois grupos que sofreram mais violência foram os homens gays (45,89% das mortes) e as travestis e mulheres trans (44,62%). Já os homens trans e pessoas transmasculinas representaram 2,53% dos casos, um número relativamente menor, mas que reflete um outro padrão de violência: aquela que ocorre dentro de casa.

Considerando que muitas pessoas transmasculinas ainda se encontram dentro da comunidade lésbica e sáfica, podemos concluir que pessoas AFAB têm sido mortas e suicidadas, mas nem na morte encontram um lugar: não há estatísticas seguras que documentem as nossas perdas. Precisamos criar um dossiê que documente as perdas de nossa comunidade, para que possamos exigir políticas públicas que contemplem amparo, acolhimento de saúde mental e física, e monitoração dessas violências. É preciso que esse recorte seja feito, pois até numa simples busca na Internet, se colocamos “mortes de pessoas transmasculinas” ou “morte de homens trans” não encontramos nada a nosso respeito.  

A saber, os dados que corroboram essa informação encontram-se em: 

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-03/dossie-aponta-crescimento-na-violencia-contra-mulheres-lesbicas-no

Abaixo, um resumo:

“O primeiro Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil mostra crescimento da violência contra mulheres lésbicas. Lançado nessa quarta-feira (7), o documento indica que, no período entre 2000 e 2017, foram registrados 180 homicídios de lésbicas. No entanto, os anos mais recentes concentram a maior parte das mortes: somente entre 2014 e 2017, foram registrados 126 assassinatos de lésbicas no país.”

“Os registros feitos de 2014 a 2017 indicam 33 suicídios, em sua maioria com lésbicas na a faixa de idade entre 20 e 24 anos, vindo em seguida a faixa de até 19 anos. Juntas, as duas faixas etárias concentram 69% dos casos de suicídios de lésbicas no Brasil.”

Para pessoas AFAB, sair de casa e se expor ainda é um tabu. O medo da violência, do roubo e, principalmente, da agressão sexual mantém muitas dessas pessoas confinadas, tornando-as vítimas silenciosas de abusos físicos, psicológicos e sexuais no ambiente doméstico. Isso também explica a alta taxa de suicídio entre homens trans, frequentemente subnotificada. A vulnerabilidade social também é um fator determinante: enquanto homens cis estão mais expostos à violência da vida noturna e das ruas, mulheres trans e travestis são vítimas constantes da violência estrutural, especialmente em contextos de prostituição.

Pautas Urgentes: Sistema Prisional, Previdência Social

e Direitos das Pessoas Transmasculinas

A necessidade de políticas públicas eficazes para corpos trans é urgente, especialmente em questões como o sistema prisional e a previdência social. A falta de diretrizes específicas coloca pessoas transmasculinas em situações de extremo risco. A retificação do nome e gênero, por exemplo, traz consigo um desafio pouco debatido: onde essas pessoas devem ser alocadas no sistema carcerário? A possibilidade de dividir uma cela com homens cis expõe pessoas transmasculinas a violências extremas, tornando a prisão ainda mais perigosa para esses corpos.

Da mesma forma, o sistema previdenciário ignora as particularidades das trajetórias trans. Uma pessoa que viveu parte de sua vida contribuindo para a sociedade como mulher deve ser obrigada a trabalhar muito mais tempo para se aposentar após a retificação de gênero? Existe alguma legislação que assegure um processo mais justo para pessoas transmasculinas e transfemininas?

E quanto às pessoas não binárias? Elas ocupam um ‘não lugar’ nesses debates? Os governos federal, estadual e municipal estão considerando suas demandas? Enquanto reformas previdenciárias continuam beneficiando militares, juízes e cargos de alto escalão, as pessoas trans enfrentam um processo ainda mais burocrático e excludente, simplesmente por sua identidade de gênero.

A revolução trans está acontecendo, mas ainda há um longo caminho a percorrer. O apagamento das pessoas transmasculinas na sociedade, as violências que enfrentam e a falta de políticas públicas adequadas demonstram que ainda há muito a ser conquistado. A luta por visibilidade, segurança e dignidade é urgente, e é essencial que continuemos construindo nossos próprios espaços, nossas próprias narrativas e exigindo nosso direito de existir plenamente.