CATS

Por Aren Gallo

Antes de mais nada, é válido esclarecer que esse texto não é uma análise do filme como um todo e sim um olhar específico em relação à temática trans que ele aborda.  

No filme, Elle Fanning interpreta um adolescente de 16 anos transmasculino (alerta transfake). Ele vive com sua mãe (Naomi Watts), sua avó (Susan Sarandon) e a esposa da avó (Linda Emond). A trama gira em torno do drama familiar em lidar com o processo de transição de Ray, especificamente os desafios da mãe em conseguir assinar os papéis necessários para que seu filho possa iniciar o processo de hormonização.

O filme estadunidense dirigido por Gaby Dellal e lançado em 2015, é mais um dramalhão psicológico que faz uso indevido de narrativas disruptivas como as vivências trans, para dar subsídio a um drama subjetivo como se este fosse a mais fiel representação da vida “como ela é”. Tudo uma grande falácia.

A obra é preenchida do começo ao fim por cenas estereotipadas da vivência transgênera, como, tirar a blusa, estar usando binder e se olhar no espelho, raspar a cabeça, a família vendo fotos da infância e comentando sobre as mudanças, o menino cis que agride fisicamente o menino trans falando que ele não tem pinto e é viado, etc. 

Não que essas cenas não existam de fato em algumas histórias de pessoas trans, mas essas cenas não representam vivência alguma, elas reduzem a experiência de ser trans à lógica cis do que seria não estar em conformidade com o gênero atríbuido no nascimento.  

Nesse filme a história que de fato está sendo contada é a que, uma pessoa trans é uma pessoa com problemas, que nasceu no corpo errado, que precisa corrigir esse corpo para ser “normal”. Como quando a irmã mais nova, ao saber que Ray é “um menino no corpo de uma menina”, diz: 

  • Mas dá para consertar isso?

Ray responde:

  • A maior parte sim!

Por mais que eu ache óbvio e repetitivo, devo dizer que não há o que consertar, pessoas trans podem querer fazer cirurgias para se sentirem melhor com seus corpos, assim como pessoas cis também o fazem.

E claro, nessa história só existem dois corpos e identidades possíveis, mulher e homem (lê-se cis), cada uma dessas categorias é carregada de funções muito bem demarcadas, não há nenhum questionamento em relação aos papeis de gênero, a vivência trans se resume a querer ser um ao invés do outro. Mais para o final do filme,  Ray encontra a avó que finalmente o acolhe como menino e diz: “Já estava na hora de termos um homem nessa família.”

Essa narrativa evidencia a limitação cis em entender o mundo somente e exclusivamente a partir dos seus padrões e isso é extremamente violento. 

Pessoas transmasculinas não querem automaticamente ser um homem, inclusive há um grande movimento dentro da comunidade transmasculina de criar novas masculinidades, e isso é um baita desafio dado que a referência de masculinidade que temos é o símbolo maior de opressão em nossa sociedade. Nós buscamos criar novos mundos, novos referenciais.

Quando se faz crítica ao transfake, é uma crítica à insistência das pessoas cis em quererem definir o que as pessoas trans são, uma crítica à cara de pau de pessoas cis acharem que sabem o que é ser uma pessoa trans. Antes que todes possam ser livres para criar e falar sobre qualquer assunto, é necessário que possam antes falar sobre si mesmes, até hoje pessoas trans não tiveram e não têm essa liberdade.