Por Juno Nedel
Antes que nada, já adianto: não venho fazer juízo de valor sobre a qualidade cinematográfica de “Grande Sertão”. E aqui, quando falo de “Grande Sertão” (2024), me refiro ao filme de Guel Arraes, que propõe uma releitura contemporânea do clássico “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa.
Falo do filme como alguém que, desde criança, tem “Grande Sertão: Veredas” como livro preferido. Pois crescer como uma pessoa gênero dissidente nos anos 1990 e início de 2000, implicou para mim que, antes mesmo de conhecer pessoas trans de carne e osso, eu as conheceria pela via da ficção.
E foi assim que conheci Diadorim: me apaixonei por ele, junto com Riobaldo (o protagonista), ao longo de todas as páginas. Me apaixonei por Diadorim personagem, mas também por Diadorim possibilidade – a possibilidade de ser assignado mulher ao nascer, mas de poder me refabricar inteiro com outro gênero, outros nomes, outra vida, se eu assim quisesse. Diadorim foi a minha primeira referência transmasculina da ficção.
É que Diadorim se definiu como quis do início ao fim. A identidade de “mulher” só foi atribuída a Diadorim após a sua morte, de maneira violenta e, infelizmente, muito familiar a diversas pessoas trans. Seu nome e gênero de batismo são descobertos em uma certidão de nascimento, bisbilhotada pelo protagonista, em agonia de luto pela perda de seu amor. Revela-se, ali, o nome morto de uma pessoa transmasculina morta.
Em vida, Diadorim sempre se definiu como “ele”. Corporificou uma masculinidade alternativa, provando a sua valentia entre todos os jagunços. E foi como “homem” que desenvolveu uma relação afetiva, densa e complicada com o protagonista Riobaldo. Diz Riobaldo:
“E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei.”
Nesse sentido, o filme Grande Sertão é corajoso ao transpor o clássico universo de Guimarães Rosa para um cenário distópico contemporâneo. Também tem coragem ao explorar a possível identidade transmasculina e/ou gênero fluida de Diadorim, mas falha ao escalar, para o papel, a atriz cisgênera Luisa Arraes. Não digo que falhe porque lhe falte competência de atuação, mas falha por reiterar a prática do transfake.
A tempo: quando falamos de transfake, estamos argumentando sobre empregabilidade, representatividade e o direito de contarmos as nossas histórias. Atores e atrizes trans dificilmente são escalados para papéis de relevância em produções nacionais, mesmo quando se tratam de histórias com protagonismo trans.
Não raramente, escalar atores/atrizes cisgêneros para interpretar personagens trans reforça estereótipos em torno das nossas existências. Muitas vezes, a identidade e a expressão de gênero de um personagem trans são vistos como uma série de roupas e adereços, colocados sobre um cabide – sendo este cabide a “verdade biológica”, ou o “sexo de verdade”. Pessoas trans não são pessoas cis fantasiadas. Nossas existências têm materialidade.
“Grande Sertão” dá protagonismo à certidão de nascimento de Diadorim quando escala uma atriz cis para interpretar um personagem tão precioso para as fabulações transmasculinas. Se a mensagem de Diadorim é que podemos, sim, contar as nossas histórias, a mensagem de “Grande Sertão” é que ainda não foi dessa vez. Quem sabe da próxima, quando estivermos prontes para conversar sobre dignidade e representatividade trans.
Concordo com Riobaldo – o correr da vida embrulha tudo, mas o que ela quer da gente é coragem. Também espero coragem do cinema nacional. Quando romperemos com os pactos cisnormativos que invisibilizam os talentos transmasculinos?