Por Leo Moreira Sá
O filme VERA (BR, 1986), escrito e dirigido por Sérgio Toledo, que se declara inspirado no livro autobiográfico QUEDA PARA O ALTO de Anderson Herzer, é uma tragédia transmascfóbica anunciada já no título da obra, desrespeitando a identidade transmasculina do autor, que do começo ao fim de seu relato de vida se colocou no masculino.
O filme de Toledo é uma obra ficcional sob a ótica de um homem cis, que constrói, sobre a vida real de uma pessoa transmasculina, uma personagem “mulher cis” que se veste e/ou deseja ser homem — a velha noção de que pessoas trans não vivem uma identidade legítima além da cisgeneridade.
O arco dramático da personagem sugere uma trajetória marcada por um tipo de “delírio de identidade”, conceito desenvolvido por Lacan e comentado em vários seminários ministrados por ele nos anos 70, nos quais considerava a transexualidade um tipo de psicose, uma quebra da personalidade (binária cisgênera). Não é difícil pensar numa direção lacaniana, já que a obra de Toledo foi realizada no período em que esse pensamento psicanalítico era muito valorizado. Em VERA, é nítido ver um lado “masculino” surgir como defensor/protetor do “feminino”, que supostamente teria sido vítima das violências sofridas por Herzer.
A atriz cis Ana Beatriz Nogueira, ao interpretar essa personagem caricata, buscou mimetizar os trejeitos e atitudes de um homem cis, alternando comportamentos lidos culturalmente como “masculinos” com momentos de submissão e sensibilidade lidos como “femininos”, o que reforça essa direção psicótica que já anuncia o fim trágico da personagem. A conclusão dessa obra é simples: a culpada pelas violências é a própria vítima.
Aclamada pela crítica da época, Nogueira recebeu 3 prêmios como melhor atriz, incluindo o Urso de Prata no Festival Internacional de Berlim.
Quarenta anos depois, quase nada mudou: artistas cisgêneros ainda insistem em interpretar personagens transmasculinos.
Quem lê a autobiografia de Herzer vai conhecer um ser humano heroico que transcendeu seu tempo ao assumir publicamente sua identidade numa época em que não havia nenhum entendimento sobre as transmasculinidades.
Nascido em 1962, Anderson Herzer enfrentou uma infância marcada por perdas e violência, sendo institucionalizado na FEBEM após reagir a um abuso. Aos 18 anos, assumiu publicamente sua transmasculinidade, mas foi suicidado pela transmascfobia estrutural em 1982, pouco antes da publicação de sua autobiografia. Sua vida durou apenas 20 anos e foi um relâmpago incandescente de lutas e grande superações, expressas numa prosa fluida e em belas poesias registradas em sua QUEDA PARA O ALTO — marco fundante do artivismo transmasculino.
O exercício de ler o livro e assistir ao filme revela o profundo abismo que existe entre VERA e a pessoa real, Anderson Herzer.