CATS

por Leo Moreira Sá

O medo é quase sempre o catalisador original de uma Ação Política. Quando uma população vulnerável com medo do avanço da opressão sobre sua existência se une em sua indignação e desejo por justiça, a mobilização de forças para uma luta coletiva é a ponta de lança para a necessária e urgente transformação social.

Mas na maior parte das vezes, o medo é um sentimento paralisante que impede a adesão à luta coletiva, compactuando com o inimigo ao silenciar nossa voz e ao se conformar com a restrição de direitos civis.

O medo é um sentimento que fragmenta uma frente de luta, minando suas potencialidades e às vezes colocando umes contra us outres, fazendo a luta política enfraquecer e recuar. O inimigo sempre se vale do medo, ameaçando quem se revolta, espalhando o pânico ao suprimir direitos conquistados como está acontecendo hoje nos EUA.

Existem situações reais e cotidianas que nos causam medo como por exemplo: perder oportunidades de trabalho, ser ridicularizado por fracassar se tornando alvo de chacota, e até mesmo ser “cancelado” pra usar um termo bem atual.

Mas existe o medo primal (– que eu imagino estar localizado na estrutura cultural) experimentado por todo ser humano que cruza a barreira do desconhecido e ele é sempre paralisante. É preciso coragem para enfrentá-lo.

Nós, pessoas vulneráveis, só temos dois caminhos: o conformismo se unindo ao opressor pra sobreviver, ou recusar as migalhas e ir à luta com coragem por seu lugar de direito.

Foram dois os momentos em minha vida que eu senti o chão fugindo sob meus pés e um medo paralisante impedindo meu corpo de se mover e raciocinar.

A primeiro foi quando eu entrei na sociais da FFLCH no começo dos anos 80 e morava no CRUSP – Conjunto Residencial da USP. Foi uma época de grandes descobertas onde o mundo ganhava outros significados pra um transmasculino sem consciência ainda de sua identidade . Dentro de um contexto de luta por liberdade contra o regime militar, eu vivenciei minha primeira crise de pânico – um medo surreal onde meu corpo dava todos os sinais de que eu iria morrer.

Depois de ser avaliado por um psiquiatra e tomar remédios controlados (não havia ainda o diagnóstico de “Síndrome do Pânico”) fui curado com ARSENICUN receitado por um homeopata. O veneno que me levaria à morte de fato, se revelou a própria cura. Foi quando eu comecei a entender que eu só me curaria dos meus medos conhecendo e enfrentando meus fantasmas. Foram anos de terapia.

A segunda vez foi quando acordei em pânico dentro de uma cela de presídio rodeado de corpos que pareciam dormir calmamente. Eu suando com o coração à mil, torcia pra que aquilo fosse só um pesadelo. Mas era real. Foi minha primeira noite dentro da cadeia, preso por tráfico de drogas em 2004 – eu era um usuário que depois de ir fundo no consumo de cocaína, acabei me envolvendo também com o comércio das drogas.

Eu chorando disse a uma companheira de cela, usuária de crack que havia passado a vida entre a rua e a cadeia, que aquele mundo não era o meu e que eu não iria conseguir sobreviver ali. Ela então, com sua sabedoria adquirida em contextos tão inóspitos, me disse uma frase que salvou minha vida: “Você não é desse mundo mas agora está nele e vai ter que aprender a sobreviver aqui.”

Consegui sobreviver como professor de ensino fundamental, ao mesmo tempo que aprendi a lutar ao lado das minhas companheiras por melhores condições de vida dentro do presídio. Na primeira rebelião que participei eu descobri que o meu medo podia ser o estopim de uma explosão de força poderosa e inesgotável, capaz de me manter vivo por cinco anos dentro daquele mundo que não era o meu.

Foi lá dentro inclusive que, ao ser lido (e desejado) como “homem” pelas companheiras, me senti livre pra me entender e me assumir como pessoa transmasculina. A prisão, dentre todas as camadas de sofrimento que vivenciei, me trouxe também a liberdade de poder ser quem eu sou.

E assim como dizia Nietzsche: “ O que não me mata, me torna mais forte”(o veneno é a cura), levei esse aprendizado pra vida com a consciência de que os desafios e adversidades são oportunidades para aprender, evoluir e se fortalecer. Enfrentar nossos medos não é só libertador. É REVOLUCIONÁRIO.