CATS

por Viviane de Paoli/Lazzarus  

Atenção: este texto pode conter “spoilers” sobre o enredo da obra.

O PREDESTINADO é um filme australiano de ficção científica lançado em 2015 e dirigido pelos “Spierig Brothers” (Peter Spierig e Michael Spierig). É baseado no conto “All You Zombies” de  Robert A. Heinlein. Estrelado por Ethan Hawke, Sarah Snook e Noah Taylor, o filme conta a história de um agente especial que viaja no tempo, e cuja carreira policial deve se prolongar por toda a eternidade. Bastante complexo, o longa trata de paradoxo temporal, ou seja, uma contradição lógica associada à ideia de viagem no tempo.

Uma das protagonistas, a personagem de Sarah Snook (Jane/John) é uma “mulher” que se encontra em conflito consigo mesma e que tenta se inscrever numa missão espacial, mas tem sua candidatura rejeitada por ser, aparentemente, uma pessoa intersexo. Diante de uma gravidez acidental, ao ser submetida a uma cesariana, Jane sofre uma transição forçada de “mulher para homem” (FTM) e, ao acordar, ela se vê como John, um homem trans.

Sem tentar focar no enredo do filme, temos vários problemas envolvendo o personagem Jane/John: no conto, Jane é intersexo, no filme o personagem é claramente transgênero – até porque pessoas intersexo não precisam e nem devem fazer cirurgias para “escolher” um gênero, e muito menos devem ser forçadas a isso. A atriz que interpreta Jane é uma mulher cisgênero – não é uma pessoa intersexo e nem uma pessoa transmasculina. A cirurgia de reafirmação de gênero pela qual Jane/John passa inclui uma prótese peniana, o que sugere que esse tipo de procedimento seja “obrigatório” numa transição corporal/física FTM. Inclusive, “Jane” sabe que é “John” ao contemplar seu pênis num espelho – a clássica e famigerada cena do espelho em filmes que tratam de transgeneridades – não tão grave aqui, mas marcando presença como parte do estereótipo trans representado no cinema.

Dentro do contexto do paradoxo temporal, Jane/John assume outras “faces”. Ela também se manifesta através do agente policial/temporal “Doe” (“Doe” é uma gíria em inglês para se referir a “alguém que não é ninguém”), interpretado por Ethan Hawke, um homem cisgênero. Descobrimos que Jane, John, Doe e outros personagens se tratam, na verdade, de uma mesma pessoa existindo por uma infinitude de tempo, quando o ator Ethan Hawke exibe o peito com marcas de mastectomia.

Temos dois atores cisgênero interpretando uma pessoa transgênero, temos uma validação de transição através de procedimentos de reafirmação de gênero – forçados e violentos – que fazem do corpo transmasculino algo “real” a partir da existência obrigatória de um falo, e um bocado de misoginia, transfobia e preconceitos contra corpos e identidades dissidentes. Enquanto participa das preparatórias para integrar o experimento espacial, Jane/John é a única “mulher” que não tem um corpo escultural e perfeito, é a única a usar óculos, ter sardas no rosto e se mostrar muito distante do padrão de beleza feminino ocidental. A partir disso, o enredo nos leva a crer que existe algo de “errado” com a personagem, pois como ela não é bonita e nem “feminina” como as outras, ela provavelmente deve ser lésbica ou sexualmente diferente. É bastante comum que narrativas cisgêneras tratem da sexualidade dissidente a partir de uma corporalidade considerada pouco atrativa: a pessoa trans – no caso, transmasculina – é feia, não é atraente, é “masculinizada” e indesejada. É como se a transição “consertasse” a realidade de Jane/John, o que é uma perspectiva totalmente equivocada diante de corpos trans.

Interessantemente, o filme só será reconhecido como transfake se visto por uma pessoa trans (ou uma pessoa LGB+ com algum letramento sobre gênero). A construção da narrativa foca fortemente nas viagens no tempo e nas missões realizadas pelos personagens, deixando sua sexualidade em segundo plano. Mesmo assim, quando você é uma pessoa trans e assiste a um (bom) filme como este, fica pensando que não custaria absolutamente nada à produção de elenco em escalar uma pessoa transmasculina para este papel, ainda mais numa obra tão recente. Nossa existência passa longe de ser “ficção científica”.