CATS

por Daniel Veiga

Este documento nasce da urgência de reconhecer e registrar a trajetória organizada da comunidade transmasculina no Brasil. Mais do que nunca, é fundamental olhar para nossa história com um olhar amplo e emancipado, resgatando as personagens, os movimentos e as ações das transmasculinidades e das não-binariedades que nos trouxeram até aqui. Compreender esse percurso não é apenas um exercício de memória, mas um passo essencial para visualizar os caminhos que se desdobram à nossa frente.

O CATS – Coletivo de Artistas Transmasculines – entende que limitar o debate à inserção no mercado de trabalho é insuficiente. Não é possível falar sobre artistas transmasculines sem antes compreender quem somos e como se construiu a nossa existência enquanto comunidade. Um exemplo disso é o pioneirismo do CATS ao propor, em 2023, uma nomenclatura que busca designar a complexidade das violências contra nossa população. Esse movimento foi imediatamente atacado, sem que houvesse qualquer convite, seja no âmbito público ou privado, para um debate construtivo. Nomear as violências que sofremos é um passo essencial, embora reconheçamos que esse processo de nomeação não será perfeito de imediato. No entanto, é preciso começar e seguir pensando e propondo a respeito.

Desde nossa fundação, também já denunciávamos em nosso primeiro manifesto a tríade de violências que nos atravessa diariamente: a invisibilidade, a ausência de representatividade e a negação do direito ao trabalho aos corpos transmasculines e não-bináries em todas as colocações de trabalho. Para nos fortalecermos enquanto grupo e classe organizada, precisamos conhecer e reivindicar nossa história – nossa luta política, nossa participação na construção de políticas públicas e nossa atuação enquanto operários não só da cultura. Só assim poderemos avançar rumo a condições mais dignas de vida e reconhecimento.

Diante de tudo isso, é imprescindível e urgente que falemos das violências que corpos transmasculines e não-bináries enfrentam. Essas violências são estruturais e sistemáticas, servindo como base para nossa invisibilização e para a negação de uma existência digna.

Em nossas reuniões, temos encontrado dissonâncias saudáveis na crítica, mas também consonâncias alarmantes ao constatarmos que somos vítimas de violências que se repetem com brutal regularidade. Entre elas, a violência sexual e os abusos na infância, que seguem marcando a trajetória de grande parte de nossa comunidade; a violência familiar, expressa em agressões psicológicas e expulsões de casa, nos empurrando para a extrema vulnerabilidade; a transfobia no ambiente de trabalho, que nos exclui e precariza nossas trajetórias profissionais; o sucateamento e os retrocessos das políticas de saúde LGBTQIAPN+, que dificultam o acesso a ambulatórios especializados e acompanhamento médico adequado, agravando o cenário; o epistemicidio que deslegitimiza nossa falas e até os estereótipos de gênero, que ferem nossa identidade singular e como grupo, entre outros. Somam-se a isso a negligência do Estado quanto ao direito à vida e à saúde mental, perpetuando um ciclo de abandono e marginalização que refletem num alto número de pessoas transmasculinas e pessoas não-binárias sendo suicidadas pelo sistema. 

E sim, reafirmamos o termo “suicidadas”, pois essas vidas não são simplesmente perdidas por escolha individual, mas arrancadas por um sistema que empurra essas pessoas para a morte. O suicídio, nesse contexto, não é um ato isolado, mas a consequência direta das violências que sofremos, tantas delas documentadas, outras tantas invisíveis, fora das estatísticas, mas igualmente devastadoras.

Esses dados não são apenas números: são vidas, histórias e potencialidades interrompidas por uma estrutura que nos nega dignidade e existência plena. Precisamos falar sobre isso e, mais do que nunca, exigir transformações concretas.

As pautas levantadas por este Manifesto não se encerram aqui. Somam-se a elas questões urgentes como o recorte racial – sobretudo no que tange aos corpos pretes – e a invisibilização das transmasculinidades mais velhas, que seguem esquecidas e abandonadas.

Quanto às pautas raciais, ainda são escassos os estudos e pesquisas que interseccionam as vivências transmasculinas e não-binárias de pessoas pretas, pardas e indígenas. Quando esses temas ganham espaço, costumam estar atrelados à violência e à solidão, perpetuando uma narrativa de dor que muitas vezes obscurece as conquistas e contribuições dessas pessoas. No entanto, suas presenças e legados são inegáveis — na ciência, no esporte, nas artes e em tantas outras áreas. É urgente ampliar esse olhar, garantindo que suas histórias sejam contadas para além do sofrimento, reconhecendo suas produções, resistências e potências.

Já sobre as velhices transmasculinas, abro um parênteses para saudar e apontar o trabalho coordenado por Sereno Sofi Repolês e sol marita mishyx que, reunindo uma equipe exclusivamente de pessoas transmasculinas e não binárias, a saber, Mari Crestani, Feliz Trovoada e Daniel Veiga (este que escreve o prefácio) criaram o projeto Transmasculinidades no Curso do Tempo, onde nos debruçamos sobre as histórias de pessoas transmasculinas – muitas delas militantes – entre 45 e 65 anos de idade, trazendo temas como envelhecimento, saúde pública, o corpo em transição, afetos, entre outros. O projeto gerou um artigo acadêmico e um podcast que pode ser livremente acessado pelas seguintes plataformas:

https://www.instagram.com/transmascnocursodotempo
https://www.youtube.com/@Transmascnocursodotempo

Voltando à introdução, vivemos tempos marcados pela ansiedade, que muitas vezes geram discussões superficiais, dificuldades de escuta e dificuldades em lidar com dissensos e contradições. Em muitos casos, esse cenário culmina na famigerada “cultura do cancelamento” e nos linchamentos virtuais, esvaziando debates que deveriam fortalecer nossa comunidade.

Este Manifesto é fruto de muitas mãos, experiências, saberes e visões de mundo. Ele não pretende abarcar toda a complexidade das transmasculinidades em 2025, mas registrar uma parte desse debate plural. Mais do que isso, busca honrar e acessar as muitas e múltiplas transmasculinidades que pavimentaram os caminhos que nos trouxeram até aqui, incluindo as pessoas que não estão mais entre nós. 

Historicizar as transmasculinidades é um ato de resistência e reafirmação de nossas existências. É olhar para trás para reconhecer as lutas que nos trouxeram até aqui, celebrar nossas conquistas e honrar aquelus que abriram caminhos antes de nós. É também um gesto de coragem: desmistificar lendas que nos silenciaram, revelar protagonistas e aliades que contribuíram para moldar nossa história e construir uma narrativa que nos pertença. 

Mas não basta apenas lembrar. É preciso avançar! Ao registrar nosso passado e compreender nosso presente, apontamos caminhos para um futuro onde nossas vozes não sejam apenas ouvidas, mas respeitadas. Um futuro onde nossa dignidade não dependa da validação de outros, mas da força coletiva que seguimos construindo.

MANIFESTOS TRANSPOÉTICOS 2025

[Fevereiro de 2025]

Organização, Revisão e Edição:

Daniel Veiga e Aren Gallo

Escrevem este documento (ordem alfabética):

Aren Gallo

Daniel Veiga

Dominic Arievilo

Leo Moreira Sá

Marun Reis

Nathê Miranda

Viviane de Paoli (Lazzarus)